«Meu caro Zé:
Acabo de receber o seu manuscrito. Li-o com o alvoroço da primeira visita a um recém-nascido cuja gestação se acompanhou de perto. Fiquei encantado.(...)
Ao editor terá V. transmitido o desejo que eu lhe acrescentasse um punhado de palavras à guisa de Prefácio. Não mo pediu directamente, porque temia talvez que eu não aceitasse a incumbência, porque, embora tendo eu o "gosto pela escrita", estou bem consciente de até onde deve ir o sapateiro, e Prefácio para obra sua era demais para este remendão.(...)
Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto. E, muitas vezes, a agressão, como aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que impede o retorno ao mundo dos realmente vivos. É por isso que o seu testemunho é singular, como é única a linguagem que usa para o transmitir. Eu explico-me melhor: o conhecimento científico das alterações das funções nervosas superiores obtém-se em regra por interrogatórios exaustivos, secos, monótonos, e recorrendo a testes padronizados, ou seja, perguntas idiotas cientificamente testadas e estatisticamente aferidas - dizem os autores.
Propositadamente, V. nada quis saber sobre o substrato neurológico do que lhe ocorrera, e disso dou testemunho. Um jantar arranjado com essa intenção, em restaurante apropriado da sua Lisboa, em que o dono me imortalizou a seu lado em "instantâneo" já devidamente pendurado, serviu tão-somente para eu conhecer melhor o amigo a quem escrevo e lhe prestar esclarecimentos elementares sobre a matéria em estudo. V., que tem espírito geométrico, e não foi matemático porque não quis, fugiu a dar ao tema qualquer tratamento científico. Não conseguiu contudo evitar dar-lhe tratamento literário, e o texto tem naturalmente o estilo que lhe confere uma experiente e riquíssima linguagem literária. E, como alguém disse, o que caracteriza esta é a técnico que a impede de se tornar numa "forma utilitária de comunicação". Mas, em minha opinião, a sua "história clínica" só poderia ser contada ao seu modo, o que significa que os fenómenos que descreve são mais facilmente apreensíveis através dos seus instrumentos narrativos do que através de um relatório minucioso de um qualquer neuropsicólogo.(...)
O grande choque, para mim, foi o seu discurso. Não havia dúvida, o José Cardoso Pires sofria de uma afasia fluente grave, ou seja, não era capaz de gerar as palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo A sua fala era um desconsolo: atabalhoada, incongruente, polvilhada de parafasias - palavras em que os fonemas estavam parcial ou totalmente substituídos. Sem fala, escrita e leitura, a Agência Lusa foi peremptória: morte cerebral, diagnóstico escandalosamente errado do ponto de vista médico, mas humanamente certeiro.
Também eu executei os tais testes, e lhe fiz as tais perguntas idiotas da praxe, para tentar perceber até onde a doença amordaçara a voz que tantas liberdades proclamava. Sei, agora, que uma nave espacial o tinha entretanto transportado para outra galáxia - metáfora que eu prefiro à sua, mais anedótica, da ilha dos três náufragos -, onde palavras como óculos, relógio, cama não tinham préstimo ou sentido, e onde, para designar todos os objectos conhecidos, e os mais que havia ainda por inventar, se aplicava o neologismo extraordinariamente eufónico que V. criara: "simoso".(...)
É claro que lhe podia enunciar cientificamente os possíveis mecanismos pelos quais se operou a sua "restitutio ad integrum". Não sei, nem para o caso importa muito, quais eles foram. Eu tenho duas outras explicações originais, uma talvez pouco científica, e a outra digna de mais madura reflexão.
nisso.(...)Toda a sua narrativa abala ainda mais os pilares em que se erigiu a Neurologia tradicional, que hoje só se mantém de pé por razões operacionais - e operatórias. De facto, o entendimento clássico é que uma lesão numa área determinada causa a perda de uma função específica, "ergo" esta função tem aí a sua sede. Haveria, assim, zonas eloquentes, de que fujo como o Diabo da cruz, já que a sua invasão equivale a desastre, e outras, chamadas na nossa ignorância de não-eloquentes, campo aberto para as minhas batalhas com o Inimigo.(...)
A segunda, é que a área que temporariamente V. deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se sabe hoje que os donos do ouvido absoluto, que lhes permite identificação imediata de qualquer som - e Mozart tinha-o, e de forma admirável -, têm a área auditiva do córtex cerebral indiscutivelmente hipertrofiada.(...)
A primeira é que V. simplesmente teve sorte, e não há nada de mal Sabe-se, hoje, que não existem centros individualizados, mas redes neuronais sincronizadas, ligando múltiplas áreas funcionais. Ao mesmo tempo, vamos tentando perceber a arquitectura neural de funções tão complexas como a consciência, a atenção, a vontade, a própria memória, para não falar já de outras, parece que únicas da raça. como o juízo moral ou o génio artístico.
Um dia, V. regressa, escritor que veio do branco, e imediatamente se põe a observar e a absorver, os dois passarões arruinados que o destino colocou ao seu lado, e enreda-os na sua trama criativa, instrumentos inocentes de uma terapia operacional que o redime. Aí, até eu participo, feito Godot ou General do seu labirinto. E a música de cena era a canção de esperança, "Forever", não o "Nevermore" do corvo agoirento. E foi retomando a leitura e a escrita, em pequenos passos, em golinhos servidos com delicadeza.
Estava finalmente pronto para a partida, recuperadas as coordenadas do espaço, do tempo e de todos os outros sentidos que são afinal mais que cinco. E Lisboa, que já dera por sua falta abre-lhe os braços.(...)
Uma última palavra. Para Keats, o desafio da poesia do futuro era "thinking into the human heart". Os cientistas deste e do próximo século sabem bem que a tarefa é "thinking into the human brain", pois continuamos todos sem saber porque é que o "binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo". Mas como dizia o personagem do nosso Eça, certas coisas não se sabem e é preferível não se saberem. Não será melhor assim?»
PIRES, José Cardoso, De Profundis, Valsa Lenta, do Prefácio de João Lobo Antunes, 1.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, p. 69, pp. 7-18