domingo, 24 de outubro de 2010

De profundis, valsa lenta, José Cardoso Pires (Depoimento de João Lobo Antunes)

«Meu caro Zé:
Acabo de receber o seu manuscrito. Li-o com o alvoroço da primeira visita a um recém-nascido cuja gestação se acompanhou de perto. Fiquei encantado.(...)
Ao editor terá V. transmitido o desejo que eu lhe acrescentasse um punhado de palavras à guisa de Prefácio. Não mo pediu directamente, porque temia talvez que eu não aceitasse a incumbência, porque, embora tendo eu o "gosto pela escrita", estou bem consciente de até onde deve ir o sapateiro, e Prefácio para obra sua era demais para este remendão.(...)
Devo dizer-lhe que é escassa a produção literária sobre a doença vascular. A razão é simples: é que ela seca a fonte de onde brota o pensamento ou perturba o rio por onde ele se escoa, e assim é difícil, se não impossível, explicar aos outros como se dissolve a memória, se suspende a fala, se embota a sensibilidade, se contém o gesto. E, muitas vezes, a agressão, como aquela que o assaltou, deixa cicatriz definitiva, que impede o retorno ao mundo dos realmente vivos. É por isso que o seu testemunho é singular, como é única a linguagem que usa para o transmitir. Eu explico-me melhor: o conhecimento científico das alterações das funções nervosas superiores obtém-se em regra por interrogatórios exaustivos, secos, monótonos, e recorrendo a testes padronizados, ou seja, perguntas idiotas cientificamente testadas e estatisticamente aferidas - dizem os autores.
Propositadamente, V. nada quis saber sobre o substrato neurológico do que lhe ocorrera, e disso dou testemunho. Um jantar arranjado com essa intenção, em restaurante apropriado da sua Lisboa, em que o dono me imortalizou a seu lado em "instantâneo" já devidamente pendurado, serviu tão-somente para eu conhecer melhor o amigo a quem escrevo e lhe prestar esclarecimentos elementares sobre a matéria em estudo. V., que tem espírito geométrico, e não foi matemático porque não quis, fugiu a dar ao tema qualquer tratamento científico. Não conseguiu contudo evitar dar-lhe tratamento literário, e o texto tem naturalmente o estilo que lhe confere uma experiente e riquíssima linguagem literária. E, como alguém disse, o que caracteriza esta é a técnico que a impede de se tornar numa "forma utilitária de comunicação". Mas, em minha opinião, a sua "história clínica" só poderia ser contada ao seu modo, o que significa que os fenómenos que descreve são mais facilmente apreensíveis através dos seus instrumentos narrativos do que através de um relatório minucioso de um qualquer neuropsicólogo.(...)
O grande choque, para mim, foi o seu discurso. Não havia dúvida, o José Cardoso Pires sofria de uma afasia fluente grave, ou seja, não era capaz de gerar as palavras e construir as frases que transmitissem as imagens e os pensamentos que algures no seu cérebro iam irrompendo A sua fala era um desconsolo: atabalhoada, incongruente, polvilhada de parafasias - palavras em que os fonemas estavam parcial ou totalmente substituídos. Sem fala, escrita e leitura, a Agência Lusa foi peremptória: morte cerebral, diagnóstico escandalosamente errado do ponto de vista médico, mas humanamente certeiro.
Também eu executei os tais testes, e lhe fiz as tais perguntas idiotas da praxe, para tentar perceber até onde a doença amordaçara a voz que tantas liberdades proclamava. Sei, agora, que uma nave espacial o tinha entretanto transportado para outra galáxia - metáfora que eu prefiro à sua, mais anedótica, da ilha dos três náufragos -, onde palavras como óculos, relógio, cama não tinham préstimo ou sentido, e onde, para designar todos os objectos conhecidos, e os mais que havia ainda por inventar, se aplicava o neologismo extraordinariamente eufónico que V. criara: "simoso".(...)
É claro que lhe podia enunciar cientificamente os possíveis mecanismos pelos quais se operou a sua "restitutio ad integrum". Não sei, nem para o caso importa muito, quais eles foram. Eu tenho duas outras explicações originais, uma talvez pouco científica, e a outra digna de mais madura reflexão.
nisso.(...)Toda a sua narrativa abala ainda mais os pilares em que se erigiu a Neurologia tradicional, que hoje só se mantém de pé por razões operacionais - e operatórias. De facto, o entendimento clássico é que uma lesão numa área determinada causa a perda de uma função específica, "ergo" esta função tem aí a sua sede. Haveria, assim, zonas eloquentes, de que fujo como o Diabo da cruz, já que a sua invasão equivale a desastre, e outras, chamadas na nossa ignorância de não-eloquentes, campo aberto para as minhas batalhas com o Inimigo.(...)
A segunda, é que a área que temporariamente V. deixou à sede e à fome, e pela qual falava, lia e escrevia, tudo funções em que é exímio, era mais musculada que a do comum dos mortais. E isto não é treta, porque se sabe hoje que os donos do ouvido absoluto, que lhes permite identificação imediata de qualquer som - e Mozart tinha-o, e de forma admirável -, têm a área auditiva do córtex cerebral indiscutivelmente hipertrofiada.(...)
A primeira é que V. simplesmente teve sorte, e não há nada de mal
Sabe-se, hoje, que não existem centros individualizados, mas redes neuronais sincronizadas, ligando múltiplas áreas funcionais. Ao mesmo tempo, vamos tentando perceber a arquitectura neural de funções tão complexas como a consciência, a atenção, a vontade, a própria memória, para não falar já de outras, parece que únicas da raça. como o juízo moral ou o génio artístico.
Um dia, V. regressa, escritor que veio do branco, e imediatamente se põe a observar e a absorver, os dois passarões arruinados que o destino colocou ao seu lado, e enreda-os na sua trama criativa, instrumentos inocentes de uma terapia operacional que o redime. Aí, até eu participo, feito Godot ou General do seu labirinto. E a música de cena era a canção de esperança, "Forever", não o "Nevermore" do corvo agoirento. E foi retomando a leitura e a escrita, em pequenos passos, em golinhos servidos com delicadeza.
Estava finalmente pronto para a partida, recuperadas as coordenadas do espaço, do tempo e de todos os outros sentidos que são afinal mais que cinco. E Lisboa, que já dera por sua falta abre-lhe os braços.(...)
Uma última palavra. Para Keats, o desafio da poesia do futuro era "thinking into the human heart". Os cientistas deste e do próximo século sabem bem que a tarefa é "thinking into the human brain", pois continuamos todos sem saber porque é que o "binómio de Newton é tão belo como a Vénus de Milo". Mas como dizia o personagem do nosso Eça, certas coisas não se sabem e é preferível não se saberem. Não será melhor assim?»
PIRES, José Cardoso, De Profundis, Valsa Lenta, do Prefácio de João Lobo Antunes, 1.ª edição, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1997, p. 69, pp. 7-18

De profundis, valsa lenta, José Cardoso Pires

(...)
Lembro-me de que essa manhã foi invadida por um aguaceiro desalmado, ouvia-se uma chuva grossa e pesada lá fora mas deve ter sido passageira porque quando acabou a Edite ainda estava ao telefone. A partir de então tudo o que sei é que me pus ao espelho da casa de banho a barbear-me com a passividade de quem está a barbear um ausente - e foi ali.
Sim, foi ali. Tanto quanto é possível localizar-se uma fracção mais que secreta de vida, foi naquele lugar e naquele instante que eu, frente a frente com a minha imagem no espelho mas já desligado dela, me transferi para um Outro sem nome e sem memória e por consequência incapaz da menor relação passado-presente, de imagem-objecto, do eu com outro alguém ou do real com a visão que o abstracto contém. Ele. O mesmo que a mulher (Edite, chama-se ela mas nada garante que esse homem ainda lhe conheça o nome, que não a considere apenas um facto, uma presença) exacto, esse mesmo Ele, o tal que a Edite irá encontrar, não tarda muito, a pentear-se com uma escova de dentes antes de partirem de urgência para o Hospital de Santa Maria e o mesmo que, dias depois, uma enfermeira surpreenderá em igual operação ao espelho do lavatório do quarto.
(...)
Extracto do livro De Profundis, Valsa Lenta de José Cardoso Pires.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

A neotenia (2)

As repercussões da neotenia sobre a condição humana são mais especificadas por Gould e outros autores citados por ele:
"Este retardamento reagiu sinergisticamente com outros marcos da hominização – com a inteligência (através de aumentar o cérebro pelo prolongamento de tendências de crescimento fetais e por prover um período mais longo de aprendizado infantil) e com a socialização (através de cimentar as unidades familiares pelo cuidado parental aumentado da prole de maturação lenta)...O prêmio adaptativo assim colocado no aprendizado (em oposição à resposta inata) é único entre os organismos... O homem é programado para aprender comportamentos, mais do que reagir via um código instintual determinante impresso... A correlação da maturação com a perda de plasticidade (mental tanto quanto física) foi há muito reconhecida... Konrad Lorenz em particular tem repetidamente enfatizado o caráter persistentemente 'juvenil' de nossa flexibilidade comportamental... a 'neotenia comportamental' é apenas uma outra conseqüência do retardamento desenvolvimental que permitiu nossa neotenia morfológica: 'o caráter constitutivo do homem – a manutenção de uma interação ativa, criativa, com o ambiente – é um fenômeno neotênico... ampliado para persistir até a senilidade'".
Ou seja, a prematuridade, este fato básico da natureza humana, não ocorre somente no início da vida como se acreditava quando se pensava que o fator biológico fosse um nascimento precoce fruto da aquisição da bipedestração, mas é persistente por toda a vida do indivíduo até a senilidade. Poderíamos preferir pensar que a percepção do estado de desamparo decorrente da imaturidade pertence somente ao início da vida, mas aí estaríamos em dificuldades para entender a difusão de muitas produções da civilização, especialmente o apelo das teorias místicas, religiões, terapias de vidas passadas por exemplo, que visam a negar a maior impotência de todas que é a que sentimos diante da consciência da morte.
Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul
Maurício Marx e Silva (e outros)

A neotenia


"Blanc escreve:
"S.J.Gould lembrou corretamente, em 1977, em um importante livro, Ontogeny and Phylogeny, que o homem difere do chimpanzé por um forte retardamento em seu desenvolvimento. Com efeito, é preciso saber que o homem e o chimpanzé passam pelas mesmas etapas durante o desenvolvimento pós-natal, e um feto de chimpanzé lembra bastante um feto humano. Após o nascimento, o bebê chimpanzé evoca ainda fortemente o bebê humano. Porém, conseqüentemente, as diferenças morfológicas tornam-se importantes, e um chimpanzé adulto lembra apenas remotamente um ser humano... Os biólogos empregam o termo neotenia para designar este fenômeno de fetalização, ou mais exatamente de juvenilização. Outros exemplos de neotenia são conhecidos no reino animal... no homem ela fixou-se definitivamente no patrimônio genético da espécie... De fato, é provável que o surgimento do homo habilis...tivesse correspondido a uma mutação dos genes de regulação do desenvolvimento, que teve como efeito retardar consideravelmente a totalidade do desenvolvimento pré e pós-natal. Podemos comparar sua importância comparando o homem atual e o chimpanzé. A ossificação no recém-nascido humano está muito atrasada em relação à observada no bebê chimpanzé(os dedos e as extremidades dos ossos são ainda cartilaginosos no nascimento). O bebê humano começa a andar por volta dos 10-12 meses, enquanto que o bebê chimpanzé começa a mover-se por si mesmo em torno dos 6. O pequeno humano ganha seus primeiros dentes apenas entre 6 e 24 meses, contra 3 e 13 meses no chimpanzé. A idade da puberdade é atingida aos 13 anos na espécie humana, contra 9 no chimpanzé. O período de crescimento não pára antes dos 20 anos no homem, contra 11 no chimpanzé. (Este último tem uma estimativa de vida mais ou menos de 45 anos, contra 75 anos para o homem atual.) Uma outra diferença capital entre o desenvolvimento do homem atual e o do chimpanzé diz respeito à velocidade de crescimento do cérebro: no recém-nascido humano, o cérebro representa apenas 23% do peso que atingirá na idade adulta, contra 40% no recém-nascido chimpanzé. Em outros termos, o cérebro continua a crescer após o nascimento, em proporções bem mais consideráveis no homem que no chimpanzé."

Revista de Psiquiatria do Rio Grande do Sul
Maurício Marx e Silva (e outros)

Cosmos - A Persistência da Memória (O cérebro humano).

terça-feira, 19 de outubro de 2010

O ser humano não tem uma natureza, mas sim uma história.

     A verdade é que o comportamento, no homem, não deve à hereditariedade específica o mesmo que o comportamento animal deve. O sistema de necessidades e de funções biológicas legado pelo genótipo aparenta o homem no momento do nascimento a todo o ser animado sem o caracterizar, sem o designar como membro da 'espécie humana'. Em compensação, esta ausência de determinações particulares é perfeitamente sinónima de uma presença de possíveis indefinidos. A vida fechada, dominada e regulada por uma 'natureza dada' é substituída aqui por uma existência aberta, criadora e ordenadora de uma 'natureza adquirida'. Assim, sob a acção das circunstâncias culturais, uma pluralidade de tipos sociais, e não um só tipo específico, poderia aparecer diversificando a humanidade segundo o tempo e o espaço. O que a análise, mesmo das similitudes, retém de comum nos homens é uma estrutura de possibilidades, na verdade de probabilidades que não pode passar ao ser sem contexto social, qualquer que ele seja. Antes do encontro de outrem e do grupo não é senão virtualidades tão leves como o vapor transparente. Toda a condensação supõe um meio, isto é, o mundo dos outros"
L.MalsonLes Enfants Sauvages. Paris, 10/18, 1964, pp.7-9 trad. port., apud Filosofia, MEC, 1975

O cérebro

 
“É no cérebro que a papoila se revela vermelha, que a maçã se torna aromática, que a cotovia canta.”
Óscar Wilde